Antífona da entrada: Inclinai, Senhor, o vosso ouvido e escutai-me;
salvai, meu Deus, o servo que confia em vós. Tende compaixão de mim, clamo por
vós o dia inteiro (Sl 85,1ss)
Leituras: Js 24,1-2ª.15-17.18b; Sl
33(34),2-3.16-17.18-19.20-21.22-23 (R/. 9a); Ef 5,21-32; Jo 6,60-69)
Estamos no final do episódio que
começou com a multiplicação dos pães e dos peixes (cf. Jo 6,1-15) e que
continuou com o “discurso do pão da vida” (cf. Jo 6,22-59). Trata-se de um
episódio atravessado por diversos equívocos e onde se manifesta a perplexidade
e a confusão daqueles que escutam as palavras de Jesus… A multidão esperava um
messias rei que lhe oferecesse uma vida confortável e pão em abundância e Jesus
mostrou que não veio “dar coisas”, mas oferecer-Se a Ele próprio para que a
humanidade tivesse vida; a multidão esperava de Jesus uma proposta humana de
triunfo e de glória e Jesus convidou-a a identificar-se com Ele e a segui-l’O
no caminho do amor e do dom da vida até à morte… Os interlocutores de Jesus
perceberam claramente que Jesus os tinha colocado diante de uma opção
fundamental: ou continuar a viver numa lógica humana, virada para os bens
materiais e para as satisfações mais imediatas, ou o assumir a lógica de Deus,
seguindo o exemplo de Jesus e fazendo da vida um dom de amor para ser partilhado.
Instalados nos seus esquemas e preconceitos, presos a aspirações e sonhos
demasiado materiais, desiludidos com um programa que lhes parecia condenado ao
fracasso, os interlocutores de Jesus recusaram-se a identificar-se com Ele e
com o seu programa.
O nosso texto mostra-nos a reação
negativa de “muitos discípulos” às propostas que Jesus faz. Nem todos os
discípulos estão dispostos a identificar-se com Jesus (“comer a sua carne e
beber o seu sangue”) e a oferecer a sua vida como dom de amor que deve ser
partilhado com toda a humanidade. Temos de situar esta “catequese” no contexto
em que vivia a comunidade joânica, nos finais do séc. I… A comunidade cristã
era discriminada e perseguida; muitos discípulos afastavam-se e trilhavam
outros caminhos, recusando-se a seguir Jesus no caminho do dom da vida. Muitos
cristãos, confusos e perplexos, perguntavam: para ser cristão é preciso
percorrer um caminho tão radical e de tanta exigência? A proposta de Jesus
será, efetivamente, um caminho de vida plena, ou um caminho de fracasso e de
morte? É a estas questões que o “catequista” João vai tentar responder.
MENSAGEM
A perícopa divide-se em duas
partes. A primeira (vers. 60-66) descreve o protesto de um grupo de discípulos
face às exigências de Jesus; a segunda (vers. 67-69) apresenta a resposta dos
Doze à proposta que Jesus faz. Estes dois grupos (os “muitos discípulos” da
primeira parte e os “Doze” da segunda parte) representam duas atitudes
distintas face a Jesus e às suas propostas.
Para os “discípulos” de que se
fala na primeira parte do nosso texto, a proposta de Jesus é inadmissível,
excessiva para a força humana (vers. 60). Eles não estão dispostos a renunciar
aos seus próprios projetos de ambição e de realização humana, a embarcar com
Jesus no caminho do amor e da entrega, a fazer da própria vida um serviço e uma
partilha com os irmãos. Esse caminho parece-lhes, além de demasiado exigente,
um caminho ilógico. Confrontados com a radicalidade do caminho do Reino, eles não
estão dispostos a arriscar.
Na resposta à objeção desses
“discípulos”, Jesus assegura-lhes que o caminho que propõe não é um caminho de
fracasso e de morte, mas é um caminho destinado à glória e à vida eterna. A
“subida” do Filho do Homem, após a morte na cruz, para reentrar no mundo de Deus,
será a “prova provada” de que a vida oferecida por amor conduz à vida em
plenitude (vers. 61-62). Esses “discípulos” não estão dispostos a acolher a
proposta de Jesus porque raciocinam de acordo com uma lógica humana, a lógica
da “carne”; só o dom do Espírito possibilitará aos crentes perceber a lógica de
Jesus, aderir à sua proposta e seguir Jesus nesse caminho do amor e da doação
que conduz à vida (vers. 63).
Na realidade, esses discípulos
que raciocinam segundo a lógica da “carne” seguem Jesus pelas razões erradas (a
glória, o poder, a fácil satisfação das necessidades materiais mais básicas). A
sua adesão a Jesus é apenas exterior e superficial. Jesus tem consciência clara
dessa realidade. Ele sabe até que um dos “discípulos” O vai trair e entregar nas
mãos dos líderes judaicos (vers. 64). De qualquer forma, Jesus encara a decisão
dos discípulos com tranquilidade e serenidade. Ele não força ninguém; apenas
apresenta a sua proposta – proposta radical e exigente – e espera que o
“discípulo” faça a sua opção, com toda a liberdade.
Em última análise, a vida nova
que Jesus propõe é um dom de Deus, oferecido a todos os homens (vers. 65). O
termo deste movimento que o Pai convida o “discípulo” a fazer é o encontro com
Jesus e a adesão ao seu projeto. Se o homem não está aberto à ação do Pai e
recusa os dons de Deus, não pode integrar a comunidade dos discípulos e seguir
Jesus.
A primeira parte da cena termina
com a retirada de “muitos discípulos” (vers. 66). O programa exposto por Jesus,
que exige a renúncia às lógicas humanas de ambição e de realização pessoal, é
recusado… Esses “discípulos” mostram-se absolutamente indisponíveis para
percorrer o caminho de Jesus.
Confirmada a deserção desses
“discípulos”, Jesus pede ao grupo mais restrito dos “Doze” que façam a sua
escolha: “também vós quereis ir embora?” (vers. 67). Repare-se que Jesus não
suaviza as suas exigências, nem atenua a dureza das suas palavras… Ele está
disposto a correr o risco de ficar sem discípulos, mas não está disposto a
prescindir da radicalidade do seu projeto. Não é uma questão de teimosia ou de
não querer dar o braço a torcer; mas Jesus está seguro que o caminho que Ele
propõe – o caminho do amor, do serviço, da partilha, da entrega – é o único
caminho por onde é possível chegar à vida plena… Por isso, Ele não pode mudar
uma vírgula ao seu discurso e à sua proposta. O caminho para a vida em
plenitude já foi claramente exposto por Jesus; resta agora aos “discípulos”
aceitá-lo ou rejeitá-lo.
Confrontados com esta opção
fundamental, os “Doze” definem claramente o caminho que querem percorrer: eles
aceitam a proposta de Jesus, aceitam segui-l’O no caminho do amor e da entrega.
Quem responde em nome do grupo (uso do plural) é Simão Pedro: “Para quem iremos
nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (vers. 68). A comunidade
reconhece, pela voz de Pedro, que só no caminho proposto por Jesus encontra
vida definitiva. Os outros caminhos só geram vida efêmera e parcial e, com
frequência, conduzem à escravidão e à morte; só no caminho que Jesus acabou de
propor (e que “muitos” recusaram) se encontra a felicidade duradoura e a realização
plena do homem (vers. 68).
É porque reconhece em Jesus o
único caminho válido para chegar à vida eterna que a comunidade dos “Doze”
adere ao que Ele propõe (“cremos” – vers. 69a). A “fé” (adesão a Jesus)
traduz-se no seguimento de Jesus, na identificação com Ele, no compromisso com
a proposta que Ele faz (“comer a carne e beber o sangue” que Jesus oferece e
que dão a vida eterna).
A resposta posta na boca de Pedro
é precisamente a resposta que a comunidade joânica (a tal comunidade que vive a
sua fé e o seu compromisso cristão em condições difíceis e que, por vezes, tem
dificuldade em renunciar à lógica do mundo e apostar na radicalidade do
Evangelho de Jesus) é convidada a dar: “Senhor, as tuas propostas nem sempre
fazem sentido à luz dos valores que governam o nosso mundo; mas nós estamos
seguros de que o caminho que Tu nos indicas é um caminho que leva à vida
eterna. Queremos escutar as tuas palavras, identificar-nos contigo, viver de
acordo com os valores que nos propões, percorrer contigo esse caminho do amor e
da doação que conduz à vida eterna.
ATUALIZAÇÃO
O Evangelho deste domingo põe
claramente a questão das opções que nós, discípulos de Jesus, somos convidados
a fazer… Todos os dias somos desafiados pela lógica do mundo, no sentido de
alicerçarmos a nossa vida nos valores do poder, do êxito, da ambição, dos bens
materiais, da moda, do “politicamente correto”; e todos os dias somos
convidados por Jesus a construir a nossa existência sobre os valores do amor,
do serviço simples e humilde, da partilha com os irmãos, da simplicidade, da
coerência com os valores do Evangelho… É inútil esconder a cabeça na areia:
estes dois modelos de existência nem sempre podem coexistir e, frequentemente,
excluem-se um ao outro. Temos de fazer a nossa escolha, sabendo que ela terá
consequências no nosso estilo de vida, na forma como nos relacionamos com os
irmãos, na forma como o mundo nos vê e, naturalmente, na satisfação da nossa
fome de felicidade e de vida plena. Não podemos tentar agradar a Deus e ao
diabo e viver uma vida “morna” e sem exigências, procurando conciliar o
inconciliável. A questão é esta: estamos ou não dispostos a aderir a Jesus e a
segui-l’O no caminho do amor e do dom da vida?
Os “muitos discípulos” de que
fala o texto que nos é proposto não tiveram a coragem para aceitar a proposta
de Jesus. Amarrados aos seus sonhos de riqueza fácil, de ambição, de poder e de
glória, não estavam dispostos a trilhar um caminho de doação total de si mesmos
em benefício dos irmãos. Este grupo representa esses “discípulos” de Jesus
demasiado comprometidos com os valores do mundo, que até podem frequentar a
comunidade cristã, mas que no dia a dia vivem obcecados com a ampliação da sua
conta bancária, com o êxito profissional a todo o custo, com a pertença à elite
que frequenta as festas sociais, com o aplauso da opinião pública… Para estes,
as palavras de Jesus “são palavras duras” e a sua proposta de radicalidade é
uma proposta inadmissível. Esta categoria de “discípulos” não é tão rara como
parece… Em diversos graus, todos nós sentimos, por vezes, a tentação de atenuar
a radicalidade da proposta de Jesus e de construir a nossa vida com valores
mais condizentes com uma visão “light” da existência. É preciso estarmos
continuamente numa atitude de vigilância sobre os valores que nos norteiam,
para não corrermos o risco de “virar as costas” à proposta de Jesus.
Os “Doze” ficaram com Jesus, pois
estavam convictos de que só Ele tem “palavras que comunicam a vida definitiva”.
Eles representam aqueles que não se conformam com a banalidade de uma vida
construída sobre valores efêmeros e que querem ir mais além; representam
aqueles que não estão dispostos a gastar a sua vida em caminhos que só conduzem
à insatisfação e à frustração; representam aqueles que não estão dispostos a
conduzir a sua vida ao sabor da preguiça, do comodismo, da instalação;
representam aqueles que aderem sinceramente a Jesus, se comprometem com o seu
projeto, acolhem no coração a vida que Jesus lhes oferece e se esforçam por
viver em coerência com a opção por Jesus que fizeram no dia do seu Batismo.
Atenção: esta opção pelo seguimento de Jesus precisa de ser constantemente
renovada e constantemente vigiada, a fim de que o nível da coerência e da
exigência se mantenha.
Na cena que o Evangelho de hoje
nos traz, Jesus não parece estar tão preocupado com o número de discípulos que
continuarão a segui-l’O, quanto com o manter a verdade e a coerência do seu
projeto. Ele não faz cedências fáceis para ter êxito e para captar a
benevolência e os aplausos das multidões, pois o Reino de Deus não é um
concurso de popularidade… Não adianta escamotear a verdade: o Evangelho que
Jesus veio propor conduz à vida plena, mas por um caminho que é de radicalidade
e de exigência. Muitas vezes tentamos “suavizar” as exigências do Evangelho, a
fim de que ele seja mais facilmente aceite pelos homens do nosso tempo… Temos de
ter cuidado para não desvirtuarmos a proposta de Jesus e para não despojarmos o
Evangelho daquilo que ele tem de verdadeiramente transformador. O que deve
preocupar-nos não é tanto o número de pessoas que vão à Igreja; mas é,
sobretudo, o grau de radicalidade com que vivemos e testemunhamos no mundo a
proposta de Jesus.
Um dos elementos que aparece
nitidamente no nosso texto é a serenidade com que Jesus encara o “não” de
alguns discípulos ao projeto que Ele veio propor. Diante desse “não”, Jesus não
força as coisas, não protesta, não ameaça, mas respeita absolutamente a
liberdade de escolha dos seus discípulos. Jesus mostra, neste episódio, o
respeito de Deus pelas decisões (mesmo erradas) do homem, pelas dificuldades
que o homem sente em comprometer-se, pelos caminhos diferentes que o homem
escolhe seguir. O nosso Deus é um Deus que respeita o homem, que o trata como
adulto, que aceita que ele exerça o seu direito à liberdade. Por outro lado, um
Deus tão compreensivo e tolerante convida-nos a dar mostras de misericórdia, de
respeito e de compreensão para com os irmãos que seguem caminhos diferentes,
que fazem opções diferentes, que conduzem a sua vida de acordo com valores e
critérios diferentes dos nossos. Essa “divergência” de perspectivas e de caminhos
não pode, em nenhuma circunstância, afastar-nos do irmão ou servir de pretexto
para o marginalizarmos e para o excluirmos do nosso convívio.
Fonte: Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus
(Dehonianos)
Nenhum comentário:
Postar um comentário