domingo, 6 de novembro de 2011

TODOS OS SANTOS



Em comunhão com todos os santos

Leituras: Ap 7,2-4. 9-14; 1 Jo 3, 1-3; Mt 5, 1-1 a



Festejamos, hoje a cidade do céu, a Jerusalém do alto, nossa mãe, onde nossos irmãos, os santos, vos cercam e cantam eternamente o vosso louvor.

Para essa cidade caminhamos, pressurosos, peregrinando na penumbra da fé.

Contemplamos, alegres na vossa luz, tantos membros da Igreja, que nos dais como exemplo e intercessão. (Prefácio de todos dos Santos).

Em Cristo brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição.

E, aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola... Para os que crêem em vós a vida não é tirada, mas transformada (Prefácio dos defuntos).

Estamos nos aproximando da conclusão do Ano Litúrgico, que vai acabar no 34o domingo do Tempo Comum, domingo no qual celebraremos a solenidade de Cristo, Rei do Universo. No pano do fundo se contempla a imagem gloriosa do Cristo, origem e término do caminho da história da salvação, e da mesma criação (cf Cl 1, 15-16). Esta estreita relação de toda a realidade a Cristo está simbolicamente bem expressa pelo movimento do Ano Litúrgico ao redor da páscoa. 

Com profunda sabedoria espiritual, a esta altura do Ano Litúrgico, a Igreja celebra em sequência a Solenidade de Todos os Santos e a memória de todos os defuntos - ordinariamente nos dias 1 e 2 de novembro; no Brasil, a Solenidade de Todos os Santos, por motivos pastorais, foi transferida para o domingo como veremos. Nos santos, ela contempla alegre e agradecida, a manifestação mais plena da fecundidade da páscoa do Senhor e os frutos que o Espírito tem produzido em tantos discípulos e discípulas de Jesus. Com os defuntos, a Igreja confirma a comunhão fraterna que une na mesma fé todos os membros do povo de Deus peregrino na história, e a esperança de partilhar a plenitude da vida na casa do Pai, junto com todos aqueles e aquelas “cuja fé somente Ele conhece” (Oração Eucarística IV).

As duas celebrações exprimem as duas faces inseparáveis da participação ao Mistério Pascal de Cristo: a comunhão fraterna no caminho da fé e a esperada partilha da plenitude da vida em Cristo. O caminho da fé se desenvolve através da complexidade e das contradições próprias da existência humana, cujo cume imediato e dramático é a morte, cuja meta, porém, é a plenitude da vida na “ressurreição da carne”, como se exprime a solene profissão de fé que recitamos todos os domingos. O Verbo de Deus assumiu livremente nossa condição humana, e a libertou da sua caducidade com sua morte e ressurreição.

A esperança cristã, não anula o sofrimento e o medo da morte, mas antecipa este processo dinâmico da fé e da vida, e o contempla realizado no próprio Cristo ressuscitado, primogênito dos ressuscitados (cf Cl 1, 18). “Em Cristo, brilhou para nós a esperança da gloriosa ressurreição... Para os que crêem em vós a vida não é tirada mas transformada” (Prefácio dos defuntos).

O que “consola”, isto é, o que sustenta o cristão diante do drama da morte, não são palavras de sabedoria e de solidariedade humana, mas é a esperança de participar à ressurreição do próprio Cristo. Os santos, dos quais hoje celebramos a memória, constituem o exemplo crível de pessoas que, pela própria conformação ao Cristo, conseguiram apreender a viver como ressuscitados desde o presente, segundo a potencialidade interior que o batismo desperta como semente de ressurreição. “Se pois, ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está à direita de Deus. Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra, pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus: quando Cristo, que é vossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados na glória” (Cl 3, 1-4)

Se, por razões pastorais, com a intenção de facilitar a participação dos fieis, - como acontece no Brasil - a Solenidade dos Santos é transferida ao domingo seguinte, separando-a de alguns dias da memória dos defuntos, é preciso salvaguardar, com sábia pedagogia pastoral, a unidade interior que une as duas celebrações. Ela ilumina o mistério da morte e da vida com a luz da páscoa de Cristo, e fundamenta corretamente a devoção aos santos, que o povo cristão gosta tanto, e nem sempre, porém, vive em maneira iluminada e fecunda.

Os textos dos prefácios citados ao início desta meditação confirmam a unidade de horizonte das duas celebrações. Gostaria sugerir, come exercício de uma especial Lectio Divina pessoal, uma leitura meditada paralela dos seus textos bíblicos e litúrgicos. É significativo como a Igreja, ao celebrar o mistério da páscoa do seu Esposo, na Oração Eucarística, lembra em conjunto a memória dos defuntos e dos santos, enquanto pede a intercessão destes para o povo ainda peregrino na fé. “Communicantes et memoriam celebrantes... omnium sanctorum tuorum”, diz o venerável Cânon Romanus. “Em comunhão com todos os santos... nós vos pedimos”, repetem também todas as novas Orações Eucarísticas, como expressão de uma mesma e constante fé e espiritualidade pascal.

Com a primeira leitura (Ap 7), o profeta, na luz do Espírito vislumbra o sentido profundo dos acontecimentos dramáticos da história do seu tempo e de todos os tempos, e a vitória de Deus sobre os inimigos da vida. Na verdade, somente em Cristo morto e ressuscitado, a história desvela seu mistério, como exprime o grande símbolo do Cordeiro imolado, porém vivente, Ele, o único a ter a capacidade de abrir os selos que fecham o livro da vida, e que ninguém consegue ler e menos ainda entender (cf Ap 5,6-14).

Com a linguagem simbólica própria do gênero literário chamado de “apocalíptico”, enquanto utilizado em escritos cujos autores pretendem anunciar acontecimentos misteriosos e desvelar o sentido oculto deles, São João interpreta a sofrida situação dos cristãos do seu tempo, e abre os corações deles à esperança da salvação, pois Deus já mostrou sua potência ressuscitando Jesus dos mortos. 

O autor inspirado oferece seu anúncio, através de imagens que evocam o êxodo de Israel do Egito e uma solene liturgia no templo, onde o Cordeiro pascal imolado se apresenta vivente. Tais imagens, para os leitores cristãos evocam experiências espirituais mais profundas: a experiência da libertação do pecado no batismo, e a do culto ao Senhor Jesus, Morto, Ressuscitado e glorificado à direita do Pai. Ele anima e guia o caminho do seu novo povo.

A imagem do anjo que traz a marca, o selo, do Deus vivo, e impede aos anjos exterminadores de danificar a criação “até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus” (Ap 7, 2-3), é imagem altamente evocativa por aqueles que tinham recebido o selo do Espírito no batismo.

O sangue do cordeiro, imolado na tarde que precedia a primeira páscoa de Israel, posto em cima da porta das casas dos israelitas, indicava que os moradores pertenciam ao povo de Israel, e por isso ao Senhor. Ao ver o sangue ele “passa além” (o verbo hebraico indica a “páscoa” como “passagem” do Senhor ), e poupa as famílias de Israel do extermínio dos primogênitos do Egito (cf Ex 12,7-14).

O selo do Deus vivo que, na visão do Apocalipse, marca os servos do Senhor, constitui o sinal de proteção e de pertença definitiva ao Senhor. “Pertencer ao Senhor” significa ser introduzido por graça e ficar numa relação profunda com ele, sendo constituído em comunhão permanente com ele mesmo. O escolhido ganha uma nova identidade, expressa pelo “nome novo” que lhe dá o próprio Senhor. “Não temas, porque eu te resgatei, chamei-te pelo nome: tu és meu.... Não temas, porque estou contigo” (Is 41, 1.5). O profeta anuncia que a antiga eleição pelo Senhor, é penhor de nova experiência de libertação, graças ao derrame do seu Espírito, que cria uma pertença definitiva ao mesmo Senhor: “Derramarei o meu espírito sobre a tua raça, e a minha bênção sobre os teus descendentes.... Este dirá: ‘Eu pertenço ao Senhor!’. E aquele se chamará pelo nome de “Jacó”. Enquanto aquele outro escreverá na sua mão: ‘Pertenço ao Senhor!’, e receberá o nome de “Israel”( Is 44, 3.5).

Os profetas resumirão o sentido profundo da aliança de Deus com Israel, na famosa fórmula “Eu serei Deus para vocês, e vocês serão povo para mim” (cf Jer 31,33b; Ez 37,27).

O apóstolo Paulo diante dos coríntios, que estão desconfiando da fidelidade do apóstolo à palavra dada, afirma com vigor que a capacidade de ficar fieis a Cristo vem de Deus, graças ao dom do Espírito, selo de Deus e penhor de vida nova: “É Deus quem nos mantém, a nós e a vós, fieis a Cristo; ungiu-nos, selou-nos e pós em nosso coração o Espírito como penhor” (2 Cor 1, 21-22). (tradução da Bíblia do Peregrino).

O Espírito é a “unção” que conforma a Cristo, o “Ungido” do Pai; guia o discípulo no seguimento e na sua imitação, e atua na consciência do batizado como penhor da vida eterna (Rm 8, 9-11). E na grande perspectiva da vida cristã, como expressão do dinamismo da santa Trindade, o apóstolo sublinha: “Por meio dele (Cristo), também vós, ao escutar a mensagem da verdade, a boa notícia da vossa salvação, nele crestes, e fostes selados com o Espírito Santo, que é garantia de nossa herança, do resgate de sua posse: para louvor de sua glória” (Ef 1, 13-14) (tradução da Bíblia do Peregrino).

Pelo contrário, “se alguém não tem o Espírito de Cristo, não lhe pertence” (Rm 8, 9).

Pertencer ao Senhor, graças ao dinamismo transformador do Espírito, é graça, vocação e tarefa. É processo dinâmico, que acompanha o discípulo de Jesus do batismo até a morte, acolhida na fé, como o último mergulho nas águas da páscoa de Cristo, o seio materno que no Espírito gera à vida nova e eterna.

A história é o tempo, concedido pela misericórdia de Deus, no qual o anjo do Senhor está marcando na fronte dos eleitos o selo que indica a pertença ao Senhor. É tempo de espera e de misericórdia. É tempo de trabalho incessante, pois o anjo há de marcar com o selo de Deus, não somente os descendentes de Abraão e de Jacó (os simbólicos cento e quarenta e quatro mil...), mas também “a multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, que ninguém podia contar” (Ap 7, 4.9). 

Todos os seres humanos, e cada um segundo suas especificidades, são acolhidos entre os “escolhidos” por Deus. O Cordeiro que está junto de Deus, com seu sangue resgatou todo ser vivente (Ap 7,13). No Cordeiro, o original projeto de Deus voltou às suas origens, e a seu cumprimento, ao mesmo tempo. A confluência no novo povo de Deus no dia de Pentecostes, por parte de alguns judeus e de membros dos povos pagãos (cf At 2, 1-11), constitui uma antecipação e uma profecia da universal convergência na casa de Deus de todos os povos, na Jerusalém celeste. 

A Igreja, afirma a constituição Lumen Gentium, “é em Cristo como que o sacramento ou sinal e instrumento da intima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” ( LG1). Enquanto continua peregrinando no tempo e nas vicissitudes humanas, ela nos oferece, na luz da fé e na celebração da sagrada liturgia, uma antecipação da realidade plena que o Espírito do Senhor está misteriosamente construindo dentro das pessoas, das culturas e das experiências humanas de sabedoria espiritual.

A peregrinação da Igreja chegará à sua meta definitiva, e a liturgia provisória da terra cederá seu lugar à liturgia celeste e perene, que é o cântico de louvor dos salvados. Todos os justos desde Adão, “do justo Abel até o último eleito”, serão congregados junto ao Pai na Igreja universal (São Gregório Magno, Hom in Ev, 19,1; LG 2).

A memória dos defuntos e a solenidade de todos os santos nos oferecem de antemão um generoso antegozo desta realidade escatológica. Elas nos empenham a nos tornarmos promotores de comunhão e de paz, entre as pessoas, as culturas, as religiões.

As duas celebrações interpretam, juntas, a realidade profunda de toda vida cristã: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!...caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos!" (1 Jo 3, 1-2 - 2 leitura).

Este é o tesouro precioso que os “puros de coração” conseguem vislumbrar desde já e que alcançarão no reino de Deus. Esta é a herança divina reservada aos “pobres em espírito” (Mt 5, 3.8 – evangelho ).

Conscientes dos nossos limites, mas animados pela esperança suscitada ao contemplar a nova humanidade que segue cantando o Cordeiro na Jerusalém celeste, juntos com a humanidade inteira imploramos ao Senhor: ”que a vossa graça nos santifique na plenitude do vosso amor, para que, desta mesa de peregrinos, passemos ao banquete do vosso reino” (Oração depois da comunhão).

Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneu Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele é monge beneditino camaldolense.

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