Origem e história da quaresma
A celebração da Páscoa nos primeiros três séculos de vida da Igreja não tinha um período de preparação. Limitava-se a um jejum que se fazia nos dias anteriores. A comunidade cristã vivia tão intensamente o compromisso até o testemunho do martírio (vivia-se então em tempos de perseguição), que não sentiam a necessidade de um período de tempo maior para renovar a conversão que já havia tido lugar no batismo. Porém, sim, se prolongava a alegria da celebração Pascal por cinquenta dias (Pentecostes). Quando se registrou uma menor tensão no compromisso de vida cristã depois da paz de Constantino, começou a sentir-se a necessidade de um conveniente período de tempo para chamar aos fiéis a uma maior coerência com o batismo. Nascem assim as prescrições relacionadas com um período de preparação para a Páscoa.
Duração de quarenta dias
O caráter original da Quaresma, segundo a força expressiva da mesma palavra, foi posto na penitência de toda a comunidade e dos indivíduos ao longo de quarenta dias. Na determinação da duração de quarenta dias, para que os cristãos se preparem para celebrar a solenidade Pascal, é mais do que certo que teve grande peso a tipologia bíblica dos quarenta dias, a saber: o jejum de quarenta dias de Jesus Cristo; os quarenta anos que passou o Povo de Deus no deserto; os quarenta dias passados por Moisés no Monte Sinai; os quarenta dias durante os quais Golias, o gigante filisteu, afrontou Israel, até que Davi avançou contra ele, abateu-o e o matou; os quarenta dias durante os quais o Profeta Elias, fortificado pelo pão assado e pela água, chegou ao Monte de Deus, o Horeb; os quarenta dias que o Profeta Jonas pregou a penitência aos habitantes de Nínive.
Finalidade e estrutura da quaresma
O Tempo da Quaresma tem a finalidade de preparar a Páscoa: a Liturgia Quaresmal conduz para a celebração do mistério pascal tanto os catecúmenos, através dos diversos graus da iniciação cristã, quanto aos fiéis, por meio da recordação do batismo e da penitência. O Tempo da Quaresma transcorre desde a Quarta-feira de Cinzas, que é dia de jejum e abstinência e de imposição das cinzas, até a Missa da Ceia do Senhor, exclusive. Desde o início da Quaresma até a Vigília Pascal não se canta (diz) o Aleluia nem o Glória. Os domingos deste Tempo são chamados 1°, 2°, 3°, 4° e 5º Domingos da Quaresma. O 6º Domingo, com o qual se inicia a Semana Santa, é chamado Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor. A Semana Santa recorda a Paixão de Cristo, desde sua entrada messiânica em Jerusalém.
Leituras bíblicas quaresmais
Nos cinco domingos precedentes à Semana Santa, no ciclo trienal, se proclamam quarenta e cinco textos bíblicos. As leituras do Antigo Testamento podem ser reduzidas em três grupos: 1°) textos que apresentam a história da salvação (a aliança original, a vocação de Abraão; o êxodo, o deserto, a história posterior de Israel); 2º) textos que proclamam a lei, e portanto, os deveres morais impostos pela aliança; 3º) os chamamentos dos profetas à conversão e ao arrependimento. As Epístolas foram escolhidas para prolongar a mensagem contida nas leituras do Antigo Testamento e mostrar sua profundidade, e para preparar a escuta do Evangelho. Os Evangelhos dos dois Primeiros Domingos, nos três anos (A,B,C), estão concentrados sempre em Cristo tentado e transfigurado; os outros três Domingos preparam mais diretamente para o batismo ou para a renovação das promessas batismais na Noite de Páscoa. O ANO A propõe textos com um forte caráter batismal (Quaresma Batismal). O ANO B propõe uma série de textos centrados no mistério da cruz gloriosa de Cristo segundo São João (Quaresma Cristocêntrica). O ANO C, com os textos de São Lucas, destaca a misericórdia de Deus com seu correspondente convite a acolhê-la (Quaresma Penitencial).
Itinerário quaresmal
Quem nos fala deste itinerário é o Bem-aventurado João Paulo II em sua homilia do dia 28/02/01 em Roma: “A quaresma é certamente, ao longo do ano litúrgico, um ‘tempo favorável’ para acolher com maior disponibilidade a graça de Deus. Precisamente por isto, ela é definida ‘sinal sacramental da nossa conversão’. O caminho para o qual a Quaresma nos convida realiza-se, em primeiro lugar, na oração: as comunidades cristãs devem tornar-se, na quaresma, autênticas ‘escolas de oração’. Depois, outro objetivo privilegiado é a aproximação dos fiéis ao Sacramento da Reconciliação, para que cada um possa voltar a ‘descobrir Cristo como mysterium pietatis, no qual Deus nos mostra o seu coração compassivo e nos reconcilia plenamente consigo’. A experiência da misericórdia de Deus, além disso, não pode deixar de suscitar o empenho da caridade, estimulando a comunidade cristã a ‘apostar na caridade’”.
Quaresma e Campanha da Fraternidade 2012
O tempo da Quaresma é tempo privilegiado na vida da Igreja. É o chamado tempo forte, de conversão e de mudança de vida. Sua palavra-chave é: "metanóia", ou seja, conversão. Nesse tempo se registram os grandes exercícios quaresmais: a prática da caridade e as obras de misericórdia. O jejum, a esmola e a oração são exercícios bíblicos de piedade, até hoje recomendáveis, na imitação da espiritualidade judaica. No Brasil, durante a Quaresma, realiza-se a Campanha da Fraternidade, com sua proposta concreta de ajuda aos irmãos, na vivência evangélica, focalizando sempre um tema da vida social. Foi aberta, na Quarta-Feira de Cinzas, a 49ª Campanha da Fraternidade (CF), cujo tema é “Fraternidade e Saúde Pública”, com o lema “Que a saúde se difunda sobre a terra”. A solenidade de abertura, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília (DF), foi dirigida pelo secretário geral da entidade, dom Leonardo Steiner, e contou com a participação do ministro da Saúde, Alexandre Padilha; do secretário executivo da CF, padre Luiz Carlos Dias, além de outros convidados.
Quaresma: 40 dias de CONVERSÃO ao amor de Cristo!
A Quaresma é uma oportunidade para «voltar a ser» cristãos, através de um processo constante de mudança interior e de avanço no conhecimento e no amor de Cristo. A conversão não acontece nunca de uma vez por todas, mas é um processo, um caminho interior de toda nossa vida. Certamente, este itinerário de conversão evangélica não pode limitar-se a um período particular do ano: é um caminho de todos os dias, que tem de abarcar toda a existência, cada dia de nossa vida.
Desde este ponto de vista, para cada cristão e para todas as comunidades eclesiais, a Quaresma é a estação espiritual propícia para treinar-se com maior tenacidade na busca de Deus, abrindo o coração a Cristo.
Santo Agostinho disse, em uma ocasião, que nossa vida é um exercício único do desejo de aproximar-nos de Deus, de ser capazes de deixar Deus entrar em nosso ser. «Toda a vida do cristão fervoroso – diz – é um santo desejo». Se isso é assim, na Quaresma somos convidados, ainda mais, a arrancar «de nossos desejos as raízes da vaidade» para educar o coração no desejo, ou seja, no amor de Deus. «Deus - diz santo Agostinho - é tudo o que desejamos» (cf. «Tract. In Iohn», 4). E esperamos que realmente comecemos a desejar Deus, e deste modo, desejar a verdadeira vida, o próprio amor e a verdade.
É particularmente oportuna a exortação de Jesus, referida pelo evangelista Marcos: «Convertei-vos e crede na Boa Nova» (cf. Mc 1,15). O desejo sincero de Deus nos leva a rejeitar o mal e a realizar o bem. Esta conversão do coração é antes de tudo um dom gratuito de Deus, que nos criou para si e em Jesus Cristo nos redimiu: nossa felicidade consiste em permanecer n’Ele (cf. João 15,3). Por este motivo, Ele mesmo previne nosso desejo com sua graça e acompanha nossos esforços de conversão.
Mas, o que é, na verdade, converter-se? Converter-se quer dizer buscar Deus, caminhar com Deus, seguir docilmente os ensinamentos de seu Filho Jesus Cristo; converter-se não é um esforço para realizar a si mesmo, porque o ser humano não é o arquiteto do próprio destino. Nós não criamos a nós mesmos. Por isso, a auto-realização é uma contradição e é muito pouco para nós. Temos um destino mais alto. Poderíamos dizer que a conversão consiste precisamente em não se considerar «criadores» de si mesmos, descobrindo deste modo a verdade, porque não somos autores de nós mesmos.
Conversão consiste em aceitar livremente e com amor que dependemos totalmente de Deus, nosso verdadeiro Criador, que dependemos do amor. Isso não é dependência, mas liberdade. Converter-se significa, portanto, não perseguir o êxito pessoal, que é algo que passa, mas, abandonando toda segurança humana, seguir com simplicidade e confiança o Senhor, para que Jesus se converta para cada um, como gostava de dizer a beata Teresa de Calcutá, em «meu tudo em tudo». Quem se deixa conquistar por Ele não tem medo de perder a própria vida, porque na Cruz Ele nos amou e se entregou por nós. E precisamente, ao perder por amor nossa vida, voltamos a encontrá-la.
A Cruz também é para nós, homens e mulheres de nossa época, que com demasiada frequência estamos distraídos pelas preocupações e os interesses terrenos e momentâneos, a revelação definitiva do amor e da misericórdia divinos. Deus é amor e seu amor é o segredo de nossa felicidade. Agora, para entrar neste mistério de amor, não há outro caminho senão o de perder-nos, entregar-nos, no caminho da Cruz. «Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me» (Mc 8,34). Por este motivo, a liturgia quaresmal, ao convidar-nos a refletir e rezar, estimula-nos a valorizar mais a penitência e o sacrifício, para rejeitar o pecado e o mal e vencer o egoísmo e a indiferença. A oração, o jejum e a penitência, as obras de caridade para os irmãos se convertem, deste modo, em caminhos espirituais que devem ser percorridos para voltar a Deus em resposta aos repetidos chamados à conversão (cf. Gl 2,12-13; Mt 6,16-18).
O período quaresmal seja para todos uma renovada experiência do amor misericordioso de Cristo, que na Cruz derramou seu sangue por nós. Coloquemo-nos docilmente à sua escuta para aprender a «voltar a dar» seu amor ao próximo, especialmente aos que sofrem e atravessam dificuldades. Esta é a missão de todo discípulo de Cristo, mas para realizá-la é necessário permanecer na escuta de sua Palavra e alimentar-se assiduamente de seu Corpo e de seu Sangue. Que o itinerário quaresmal, que na Igreja antiga é itinerário para a iniciação cristã, para o Batismo e para a Eucaristia, seja para nós, batizados, um tempo «eucarístico», no qual participemos com maior fervor do sacrifício da Eucaristia.
Bento XVI, 21 de fevereiro de 2007.
Pequenas notas sobre a espiritualidade quaresmal
1) A Quaresma não é tempo negativo, como muitas vezes pensam os que vivem longe do Evangelho, mas tempo dinâmico, de renovação da vida e de volta aos valores da vida, tendo como meta definitiva o valor perene da páscoa eterna, na comunhão com o Senhor Ressuscitado.
2) O importante, na Quaresma, não é, porém, aquilo que fazemos, mas o que deixamos Deus fazer em nós e por nós. É tempo de graça e de salvação (Cf. 2Cor 6,2), tempo, pois, de abrir espaço para Deus em nossa vida e, como consequência, abrir o coração para os nossos irmãos e irmãs.
3) Tudo na Quaresma, como na liturgia, tem sentido simbólico. Assim, o jejum e a abstinência de carne, por exemplo, não podem reduzir-se a mera redução ou abstenção de alimento, mas tal atitude deve acenar para uma vida sóbria, diante de tantas comodidades e prazeres que o mundo moderno e consumista nos apresenta. É a afirmação do “SER”, ontológico, diante do “ter”, do “poder” e do “prazer”, como procedeu Cristo no evangelho das tentações (1º domingo da Quaresma).
4) Faz parte da espiritualidade quaresmal, e com grande ênfase, como no passado, a tomada de consciência da fé batismal, a qual se renova na terceira parte da Vigília Pascal do Sábado Santo, como celebração solene.
5) É preciso viver a Quaresma na espiritualidade evangélica, caminhando com Cristo rumo à Páscoa. Em outras palavras, é preciso fazer de nossa vida uma caminhada com Cristo para Jerusalém, assumindo a cruz de cada dia (Cf. Lc 9,23), para ser com ele crucificado e com ele ressuscitar no domingo da Páscoa, voltando ao seio do Pai, ao eterno “hoje” de Deus, ao “dia que não tem ocaso”.
6) Quaresma é tempo para a conversão, para melhorar no processo de humanização pessoal e comunitário. A Quaresma coincide com a própria vida de todo crente, com o ser e missão de toda a Igreja e com a vocação da comunidade humana inteira.
7) Quaresma é um convite a mudar aquilo que temos de mudar na busca de ser melhores e mais felizes, um convite a construir em vez de destruir e a olhar e voltar para formas de vida mais justas, mais solidárias, mais humanas.
8) Quaresma é um convite a buscar diligentemente novas formas de ser e fazer Igreja, sendo melhores e mais autênticos discípulos do Crucificado Ressuscitado.
9) O tempo litúrgico da Quaresma – como nossa própria existência – é percorrido com o olhar dirigido à Páscoa da Ressurreição e à Páscoa definitiva em Deus. Páscoa de vida abundante que se opõe a toda forma de discriminação e de envelhecimento do ser humano, de sua dignidade, a toda forma de atropelo e violência, a toda forma de mentira, maldade e morte, a toda forma de corrupção e divisão, a toda forma de marginalização e opressão. Porque a Páscoa, como ponto de chegada, cume e superação da Quaresma, é absoluta novidade de vida, da vida abundante que Deus nos oferece e à qual Deus nos convida neste tempo e em todo momento.
10) A Quaresma não é um tempo muito exigente se o consideramos unicamente em termos de observâncias exteriores. As práticas penitenciais que adotemos devem ser sinal de nossa atitude de mente e coração. Cada um deve tentar estabelecer qual é a vontade de Deus para ele. Cada um deve perguntar-se em sua oração: “Senhor, que queres que eu faça?” E já que a vida proporciona circunstâncias apropriadas para a penitência, pode ser que o melhor seja aceitá-las com generosidade e paciência.
11) Não é fácil aceitar a necessidade da conversão do coração, e este é um chamado contínuo do tempo da Quaresma: o chamado de confrontar nossa vida com as exigências do Evangelho!
12) A conversão não necessita ser repentina e nem dramática. Pode ser gradual e imperceptível e desenvolver-se ao longo da vida. O chamado à conversão é permanente; portanto, nossa resposta deve ser contínua.
13) Se pensamos que não temos nada que reprovar em nossa vida, convém que escutemos as terminantes palavras de São João: “Se dizemos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a Verdade não está em nós” (1Jo 1,8).
14) A penitência, no sentido de conversão, nunca é opcional. Não pensar que pelo fato de ser quem somos – pessoas consagradas – já estamos convertidos. Nossa conversão nunca é completa e total. Sempre há pequenos espaços de nosso coração não convertidos ao Evangelho, zonas de resistência à graça de Deus; além disso, temos de lutar constantemente com nossos limites e nossas falhas. Somente Deus pode criar em nós um coração novo; e isso é certo inclusive na vida de pessoas muito piedosas, bondosas e santas.
DOMINGOS DA QUARESMA
Mais uma vez, no caminho de preparação para a mais importante festa do calendário cristão, a Igreja nos propõe um tempo de preparação – de penitência e de escuta da palavra, de acolhimento do plano de Deus e de atenção aos irmãos.
Neste ano de 2012, os textos que nos serão apresentados ao longo destas cinco semanas, mostram-nos um percurso claro e definido: Deus quer oferecer-nos um mundo onde a felicidade é possível (1º domingo = Mc 1,12-15) e a sua Palavra ensina-nos o caminho (2º domingo = Mc 9,2-10), Palavra que nos chama à conversão e à renovação (3º domingo = Jo 2,13-25). Aceitar esta Palavra implica, pois, mudar de vida. Fiquemos, contudo, certos do amor de Deus, gratuito e incondicional (4º domingo = Jo 3,14-21). Quanto a nós, temos de estar atentos ao seu plano de salvação e ir ao encontro dos outros, no amor e no serviço (5º domingo = Jo 12,20-33).
A “nova evangelização” a que a Igreja nos convida a todos nesta Quaresma impele-nos a não guardarmos este segredo do amor misericordioso de Deus e a partilhá-lo à nossa volta.
Uma santa Quaresma para todos nós.
Pe. Antônio Lúcio, ssp
Retiro mensal dos Institutos Anunciatinas, Gabrielinos e Santa Família
São Paulo, 10 de março de 2012
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